Por: Prof. Dr. Francisco Cabral Alambert Junior
Data: 19.06.2009

Dignos colegas desta Congregação,

Meu querido professor Carlos Guilherme Mota,

É com orgulho que venho aqui, neste dia tão difícil, e ao mesmo tempo tão feliz. Quero especialmente cumprimentar a todos e agradecer às professoras Sandra Nitrini, diretora de nossa Faculdade, e Marina de Mello e Souza, chefe de meu Departamento (bem como a minha vice-chefe, professora Ana Paula Megiane) pela postura universitária, corajosa e justa, neste momento tão obscuro da história de nossa Universidade. As posturas destas mulheres me orgulham. Elas me representam. A reitora desta Universidade não me representa mais, nem a ninguém de bom senso e lisura democrática.

Professor Carlos Guilherme Mota, ainda outro dia, a Tropa de Choque convocada pelo Governador e pela Reitora, na nossa Terça-Feira Negra, começou a atirar nos manifestantes em frente à Faculdade de Educação e à Escola de Aplicação. Depois, veio marchando pelas ruas da Universidade para jogar bombas no prédio do seu Departamento. Assim, os gases e as balas de borracha criaram um ponte imaginária entre a Educação e a História. Sinto muito ter que elaborar, neste momento, essa triste metáfora de um caminho rumo ao abismo.

As tropas usaram o aval que o Governador, ex-líder estudantil e ex-professor, e a atual Reitora deram para que fizessem o trabalho deles: “negociar” com seus colegas, subordinados e estudantes. Não estamos na época da ditadura, quando o senhor participou da resistência contra o arbítrio. Estamos na democracia precária, UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO 12 CARLOS GUILHERME SANTOS SERÔA DA MOTA nesta frágil Sociedade Civil, que o senhor, na sequência de seu mestre Florestan Fernandes, nos ensinou a defender. E por isso, uma coisa grave aconteceu. Se a Tropa de Choque pode atirar bombas dentro da Universidade, então tudo é permitido. Acho que dias piores virão.

Mas hoje não. Mesmo que hoje o prédio da Faculdade de Direito, a mando de seu Diretor, João Grandino Rodas, esteja fechado, hoje é um dia luminoso, em meio à tanta feiúra fria. É o dia em que homenageamos um dos construtores da Universidade de São Paulo. É o dia mais importante da minha vida universitária: o dia em que eu tive a honra de falar em público sobre meu mestre, sobre o professor que admiro e com o qual tenho o compromisso moral de continuar, no melhor que eu puder, o seu trabalho no Departamento e na área de História Contemporânea, que ele defendeu em tempos difíceis – e sem a Tropa de Choque.

Um homem que já foi até mesmo anti-candidato a reitor (é o que eu ouvia, em 1985, quando era aluno da Filosofia), que apoiou desde sempre as eleições diretas para todos os órgãos da Universidade. Um homem que os funcionários mais antigos do Departamento que ele chefiou lembram com respeito e admiração. Um homem que foi eleito para ser diretor da Faculdade de Filosofia, mas que também não foi aceito pelo mesmo sistema que ainda hoje vigora. Em vez disso, logo em seguida, ele transformou essa derrota gloriosa em vitória universitária: nos deu, congregando outros mestres, pesquisadores e escritores, nada menos que um Instituto de Estudos Avançados. E como precisamos avançar em nossos estudos e na democracia, nesta Universidade e fora dela, professor Mota!

Mas como avançar? Como não retroceder ao mundo das bombas e dos conselhos de sábios? Como conseguir superar a dialética da força de um país novo, de destino aberto, com a permanência das forças coloniais que reiventam e reacomodam seu autoritarismo de nascença e barram o quanto podem a emergência da nova sociedade civil? Percebo que essas questões, tão presentes entre nós, são questões que Carlos Guilherme se fez desde muito cedo. Por isso quero comentar o seu primeiro livro, um dos mais impressionantes primeiros livros da inteligência brasileira: Idéia de revolução no Brasil (fruto de sua dissertação de mestrado de 1967).

As histórias em torno dos livros de História frequentemente dariam outros bons livros. Algumas vezes elas são mesmo imprescindíveis para esclarecer os significados do exercício historiográfico.

Ainda em 1967, o livro seria publicado, em tiragem universitária limitada, com o mesmo título atual. ‘’Limitada’’, porque um estudo marxista sobre os princípios da idéia de revolução no Brasil (ainda que tratando das revoluções coloniais) era tudo o que o regime ‘’revolucionário’’ do momento não queria. Vicissitudes políticas e acadêmicas levaram o historiador a Portugal, onde, graças ao empenho de Vitorino Magalhães Godinho, uma editora portuguesa interessou-se pela obra. Mas Portugal sob Salazar também não poderia admitir um estudo sobre o pensamento revolucionário em sua excolônia. Carlos Guilherme estava fora de lugar e contra o seu tempo, como se pode ver.

O título alternativo pensado pelo autor, ‘’O Viver em Colônias’’, agradava menos ainda nesses tempos de guerras coloniais na África. Por fim, a primeira edição comercial só apareceria em Portugal, em 1970, com o eufemístico título ‘’Atitudes de Inovação no Brasil (1779-1801)’’. Entre nós, Idéia de Revolução no Brasil’ faria sua primeira aparição pública apenas em 1979, durante a anistia e a abertura política. Como se vê, títulos, e obras, radicais também podem ser exilados.

Na ex-colônia e na ex-metrópole, ambas sob regimes autoritários, o livro gerava um compreensível mal-estar. Estudando as configurações históricas de conceitos políticos como ‘’revolução’’, ‘’autonomia’’, ‘’nacionalidade’’, a obra indicava os caminhos e impasses dos processos de dependência e independência; revelava como se estruturavam os discursos de oposição e sua práxis; mostrava os limites do liberalismo no seu espelho colonial e denunciava as formas de pensamento ‘’ajustadas ao sistema’’.

Acima de tudo, mostrava como o poder se organizava contra as ‘’misteriosas palavras’’ de um poeta sedicioso como Cláudio Manuel da Costa, palavras que podiam orientar o desejo de independência. “Tempos de quietação”, na expressão de Gonzaga, por certo não eram.... Carlos Guilherme, ao estudar a ‘’projeção da revolução no mundo das palavras’’, revelava como os poderes coloniais foram cultivando o horror pelas ambiguidades e pelo duplo sentido, um horror que se projetava desde as minas rebeladas em 1789 até o ano em que o título de seu livro teria de ser expurgado. Ou talvez até hoje, aqui mesmo dentro da USP.

Note-se que a obra surgiu pouco antes do AI-5, no mesmo ano em que Glauber Rocha filmava Terra em Transe, outro retrato implacável da crise da palavra perseguida. A aproximação não é descabida. Esses discursos radicais, geniais em suas diferentes formas, eram parte da mesma crítica, da mesma voz ativa que o Golpe de 1964 veio combater. Sintomaticamente, quando Carlos Guilherme publicou seu mais controvertido e radical livro, Ideologia da cultura brasileira, voltando-se agora ao presente e denunciando o nacionalismo retrógrado que inspirava boa parte da herança dos “Intérpretes do Brasil”, especialmente dos gilbertofreyrianos, Glauber, que via em Darcy Ribeiro e no general Golbery do Couto e Silva “dois genios da raça”, já fascinado por estes e à beira de defender os militares no poder, declara detestar o livro. De novo, Carlos Guilherme estava dentro e fora de seu tempo.

No olho do furacão dos anos 60, o estudo dialogava com a recente historiografia marxista uspiana, cujo objetivo era então entender o Brasil nos quadros da crise mais ampla, não de uma ‘’civilização luso-tropical’’ (como queriam os ideólogos do ‘’caráter nacional’’, que Carlos Guilherme combateu, incluindo aí seu amigo, ex-professor e colega Sérgio Buarque de Hollanda), mas de um sistema colonial que se desintegrava frente às transformações mais amplas do capitalismo, do qual era a parte fraca.

Creio que aqui chegamos ao cerne da melhor tradição historiográfica que esta Universidade criou até hoje. Se a Fernando Novais, uma das grandes influências do nosso autor (e amigo de longa data), interessava explicar, na linha aberta por Caio Prado Jr., as dinâmicas estruturais da crise do antigo sistema colonial, a Carlos Guilherme coube explorar as contradições desse processo ‘’também no nível das consciências’’.

Dito de outra forma, a crítica marxista uspiana (formada através da geração que estudou O capital) estava explicando o processo econômico. Carlos Guilherme ia no mesmo caminho, mas construiu outra ponte. Trouxe essa discussão para o campo da História Social das Idéias, tirou o foco do universo mental das elites e, com um mote de ordem política, inaugurou a bem dizer entre nós a vertente social da história das mentalidades e da cultura. E isso tudo aos 27 anos!

Foi isso que eu aprendi, na minha vida intelectual com Carlos Guilherme Mota. Foi por seu intermédio que pude entender precisamente do que falava Adorno, em célebre passagem programática de sua Teoria Estética: “a teoria dialética- caso não queira cair em mero economicismo e numa mentalidade segundo a qual a modificação do mundo se esgote em aumentar a produção – está obrigada a assumir para si a crítica de cultura (...). Se a teoria dialética se mostra desinteressada pela cultura enquanto um mero epifenômeno, então ela contribui para que o desconcerto cultural continue a se propagar e colabora na reprodução do que é ruim” (ADORNO, T. W. Teoria Estética. São Paulo: Martins Fontes, 1982, p.85).

Os historiadores dialéticos têm essa missão: compreender e explicar a realidade, historicamente formada, de modo a não colaborar na “reprodução do que é ruim”. Mas qual ponte liga a mentalidade, a cultura, e a realidade?

Use your mentality/wake up to reality

Este verso genial de Cole Porter, que já foi usado por Carlos Guilherme em um de seus ensaios, serve perfeitamente para explicar o sentido de seu trabalho como historiador da cultura e das idéias. Aliás, quantos historiadores usariam um verso de Cole Porter como epígrafe e projeto de trabalho? O verso, interpretado segundo nosso homenageado, é um chamado para a ação intelectual: pensar o mundo para poder transformá-lo.

Os poetas, aliás, frequentam o mundo e a “mentalidade” de nosso homenageado. Acho mesmo que eles lhe dão régua e compasso. Drummond povoa quase tudo que Carlos Guilherme fez. Mas foi o mais sui generis dos poetas e intelectuais do Modernismo, Sérgio Milliet, a ponte que ligou Carlos Guilherme à vida intelectual. São lindas as histórias que ele conta sobre o encontro do jovem de 19 anos com o mestre modernista, na Biblioteca Municipal, sobre os livros que Milliet lhe deixava para ler, cotidianamente, e depois discutia com o estudante da USP, então seu funcionário. Livros de arte, poesia, sociologia, crítica literária, etc.

Antonio Candido, em um ensaio belíssimo, definiu o mesmo Milliet, que ele também admirava, como o “homem-ponte”: o elo entre a boemia transgressora dos modernistas de 22 com a geração do próprio Antonio Candido, a geração dos críticos e pensadores que abraçaram o projeto universitário da jovem USP. No final de sua vida, este poeta, historiador, crítico de arte, boêmio que tinha cadeira cativa no mitológico Paribar, construiu outra ponte com a geração uspiana posterior à geração de Candido. E essa ponte era Carlos Guilherme Mota. Através daquele intelectual oblíquo, acadêmico sem cátedra, o futuro historiador começaria seu caminho, um caminho entre gerações.

(...) Na comparação entre sua geração e a de Carlos Guilherme, Antonio Candido posa de homem do passado, coisa que ele é e não é: é, porque se formou em um mundo muito diferente do de hoje; mas também não é, porque seu pensamento é  ainda atual e decisivo. E fala de Carlos Guilherme como homem de um outro tempo, mais próximo do “nosso tempo”, coisa que ele também é e não é.

Ele é, porque de fato, já produto do sistema crítico-universitário legado pela geração de Milliet e Antonio Candido, trazia uma capacidade crítica muito acentuada para se compreender a história do Brasil, enfatisando suas perversões ideológicas. Mas também não é, se entendermos “nosso tempo” (o meu tempo, por exemplo, porque sou bem mais “novo” do que eles dois) como um tempo de derrotas enormes do pensamento progressista e de esquerda, de vulgarização rebaixada do ensino e da pesquisa, das exigências de formação, um tempo de descaso com a universidade pública – contra tudo o que é público, aliás, incluindo aí o “intelectual público” e atuante, que eles representam com tanta propriedade.

Se bem entendo, o que Antonio Candido quis dizer é que Carlos Guilherme é um homem do futuro. E ele é mesmo. Estamos aqui para homenageá-lo pelo seu passado, ou seja, por tudo o que ele nos legou. Mas esse homem-ponte ainda está desenhando uma trajetória, a sua, a de sua Universidade, a de seu país, e a nossa, que seguimos seu rumo.

Em resumo, estamos aqui homenageando uma personalidade exuberante, que “aprecia e pratica um pouco de piano-jazz e participa da cultura do Manhattan e do Dry Martini”, como ele mesmo gosta de dizer. O professor Carlos Guilherme Mota é da USP, embora freqüentemente de modo oblíquo. Mas é também algo além disso: ele é o feliz encontro entre o pesquisador-acadêmico, o poeta-pensador, o intelectual público, o socialista de coração e o boêmio das melhores noites paulistanas. Eu não posso sonhar com um futuro melhor que este. Pronto: para mim o dia já clareou.

Então: Saúde, professor!

E vida longa à nossa Universidade que não precisa de polícia para ser nossa.