Por: Prof. Dr. Pedro Luis Puntoni
Data: 14.12.2006

Ao meu professor Fernando Novais.

Falo, de acordo com o costume, em nome desta Congregação. Falo para tentar traduzir em palavras o sentido da homenagem que hoje fazemos ao professor Fernando.

Gostaria, inicialmente, de agradecer aos colegas que me concederam o privilégio de saudar o professor, meu querido mestre e amigo. Registro que faço este discurso com muita emoção. Um momento de grande responsabilidade, mas também de enorme alegria.

Mais do que a concessão de uma dignidade, considerá-lo Professor Emérito desta Faculdade significa colocá-lo simbolicamente entre aqueles que temos por mais altos na nossa comunidade. Sabemos todos que o título de professor emérito não corresponde a nenhuma etapa da carreira funcional de um professor. É uma honraria excepcional concedida aos professores já aposentados que contribuíram de forma extraordinária para nossa comunidade – contribuíram de forma extraordinária para as atividades fins que nos justificam.

Somos uma Faculdade de Ciência e de Formação. O Ensino e a Pesquisa, indissociáveis, são as duas dimensões fundamentais de nossa atividade profissional, de nosso compromisso existencial. O reconhecimento da excelência das atividades didáticas e de pesquisa desenvolvidas pelo professor nas últimas cinco décadas junto ao departamento de História justifica plenamente esta dignidade. Há exatos vinte anos, o professor Novais se aposentava. Deixou as atividades de ensino no curso de História, para então dedicar-se a um novo vínculo no Instituto de Economia da Universidade de Campinas. Mas permaneceu ativo nos programas de Pósgraduação de história desta nossa Universidade. Permaneceu presente, extraordinariamente presente, no nosso campo de trabalho. Nestes anos, formou dezenas de mestres e doutores, entre os quais me encontro. Nunca se afastou de nossa comunidade e ainda se dedica intensamente à formação de novos pesquisadores. Seus estudos, como se sabe, definiram todo um amplo campo de investigações...

Fernando A. Novais nasceu em Guararema, no Estado de São Paulo. Filho de um professor de grupo escolar casado com uma “moça muito simples e de origem mestiça”. Como ele mesmo lembra, em entrevista para o livro “Conversas com os historiadores brasileiros”, seu avô era negro, filho de escravos e sua avó, italiana do Vêneto. Donos de uma padaria. Seguindo a profissão do pai, a família do pequeno Fernando andou por diversas cidades do interior do Estado, até chegar na Capital. Com dezesseis anos, a opção pelos estudos clássicos no colegial parecia tranqüila: desde sempre pensara em seguir o pai e se tornar professor. O interesse pelas humanidades, pela literatura, o levou à Faculdade de Filosofia. Aqui nasceria o historiador.

O gosto pela história, gestado nos cursos da professora Maria Simões no colégio Roosevelt, agora se transformaria numa dedicação para a vida. O primeiro e maior impacto veio no curso de História Moderna, ministrado pelo professor Eduardo d’Oliveira França. Um curso monográfico: a Renascença italiana, Florença no século XV. A Universidade e, em particular, nossa Faculdade transformaram o panorama intelectual brasileiro: o encontro de uma atitude renovada em relação às ciências do homem, fruto em boa medida da presença dos professores estrangeiros, aliava-se ao radicalismo imanente à experiência social dos alunos... vários deles oriundos das camadas mais pobres ou, apenas, remediadas da sociedade brasileira. Abria-se uma dimensão que escapava das tiradas generalizantes, de um ensaismo, como o de Oliveira Vianna, comprometido com um Estado autoritário e, no caso da produção historiográfica, de um certo amadorismo metodológico. Desde então, imerso neste ambiente de nossa Faculdade, o jovem estudante pode usufruir desse espírito livre, rigoroso e interdisciplinar. Marca significativa – já mítica - desta experiência foi, sem dúvida, o chamado “Seminário Marx”, que reuniu, entre 1961 e 1964, vários jovens intelectuais de destaque, como Fernando Henrique Cardoso, José Arthur Giannotti, Bento Prado Jr., Roberto Schwartz... em torno de uma leitura “metódica” da crítica da economia política.

Antes mesmo de terminar o curso, o estudante tornava-se professor. No final do segundo ano, tornou-se assistente da professora Alice Canabrava, na Faculdade de Economia. Em 1961, já formado, passou a trabalhar como assistente do professor França, na cadeira de História Moderna desta Faculdade, onde esteve até se aposentar em 1986. Naqueles dias - tão distantes de um certo “produtivismo” que tem, em alguns aspectos, sufocado os programas de pós-graduação, regulados (numa incompreensível inversão) pelos ritmos dos sistemas de avaliação – uma tese podia levar uma década para ser escrita. Foi o que aconteceu com o professor Novais. Sua tese foi defendida apenas em 1973... e publicada em 1979.

Dizer que sua tese, Portugal e o Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial, marcou a historiografia é quase um truísmo. Nela, o instrumental analítico do marxismo é utilizado de forma magistral, associado às reflexões contemporâneas da historiografia, sobretudo os resultados da escola dos Annales. Aliando uma interpretação do processo de formação do capitalismo, derivada em grande parte de uma definição mais ampla da própria noção de capitalismo comercial, Novais conseguiu “ir além” da tese de Caio Prado Jr., para quem o “sentido da colonização” e, portanto, de nossa formação era a produção de mercadorias para o mercado externo. Mais do que isso, no seu entender o processo de colonização se articula, de forma mais ampla, à gênese do capitalismo moderno, inscrevendo-se como peça da assim chamada acumulação primitiva de capital. Sua leitura, como se percebe, renova a presença do marxismo no pensamento social brasileiro – aproveitando, ao máximo, a experiência do grupo de estudos sobre O Capital que confrontou diversas leituras de intelectuais paulistas. A obra de Fernando Novais é, nesse sentido, fruto da universidade pública e da atualização intelectual dos anos 60 e 70, processo este vinculado à prática política e à reflexão engajada. No trânsito seguro com as outras ciências do homem, notadamente a Sociologia, Fernando não subordinou – muito pelo contrário! - a especificidade do conhecimento histórico.

Sua obra se completa, no meu modesto entender, nos desdobramentos futuros de sua pesquisa. Pesquisa que, sem dúvida, se realiza também na nossa, isto é, por meio de seus alunos de mestrado e doutorado, na USP ou na Unicamp, ou, num senso mais amplo, em todos aqueles que se viram influenciados por suas interpretações.

De forma inspirada e inovadora, Fernando Novais propôs uma análise do processo de formação da sociedade brasileira, buscando compreender os mecanismos da crise do Antigo Sistema Colonial, processo que define as condições da emergência do Estado Nacional. Sem nenhum automatismo, recusando qualquer postura dogmática, Fernando manteve-se fiel à um pensamento radical que procurava enfrentar a realidade de forma produtiva, isto é, comprometida com a construção de sentidos. Afirmando, sempre, a especificidade do saber produzido pelo historiador.

A perspectiva do historiador, como nos lembra Novais, é diferente daquela do sociólogo ou do economista. Em termos simplificados, podemos dizer que o cientista social descreve para explicar, enquanto que o historiador explica para descrever. A consciência da totalidade, marca evidente da influência do marxismo e da história estrutural dos Annales, sempre conduziu a sua reflexão. Como mostrou Novais, em um artigo sobre a vida cultural na época do Antigo Regime “os homens vivem, no curso da história, todas as dimensões da realidade, que a análise separa para tentar explicar”. Contudo, aqui me permito cita-lo mais longamente: “Na realidade objetiva, portanto, todas essas dimensões estão interligadas, e são interdependentes. Ao fixar uma determinada dimensão - a vida econômica, por exemplo - é até certo ponto possível, sob certas condições, estabelecer determinadas configurações (sistemas econômicos, tipos de economia etc.), que abrem caminho para uma periodização. O mesmo quando tratamos da vida social, política, ou das produções culturais. As várias periodizações entretanto não coincidem, na medida em que parecem obedecer a ritmos diferentes. Ficam justapostas, e não articuladas. Ora, sendo assim, o critério de periodização global não se poderia mesmo encontrar numa inexistente coincidência, mas exatamente na forma de articulação que, num dado tempo, integrasse os vários níveis, aparentemente desencontrados. Assim, a persistência de uma determinada configuração setorial, quando mudam os demais setores, deixa de ser um problema insolúvel, na medida em que a mesma configuração muda de natureza quando se articula com novas configurações. A articulação, isto é, a totalidade, sobreleva e define as partes que a compõem. A contemporaneidade, isto é, a coincidência num mesmo tempo, marcaria a simples temporalidade; a articulação definiria a historicidade de qualquer segmento estudado”.

Já em 1967, no primeiro de seus trabalhos em que discutia a colonização e o sistema colonial – trabalho apresentado no IV Simpósio dos Professores Universitários de História – Fernando Novais define sua proposta teórica que busca inserir “a colonização moderna no contexto do Antigo Regime - absolutismo, capitalismo comercial, política mercantilista, sistema colonial - procurando esclarecer as conexões que articulam os vários componentes desse todo, destacando as tensões sociais derivadas da ascensão burguesa a partir da estrutura feudal e através da época moderna”. Com isso, acreditava (com razão!) “ter escapado a um possível economicismo que nos poderia ter viciado a análise, que se pretende globalizadora”. Em uma passagem, que me permito citar, estabelece de forma cristalina a sua posição como historiador: “Além disso, importa ficar bem claro que, ao tentarmos fixar as categorias essenciais desse processo histórico, não buscamos de forma alguma os denominadores comuns presentes necessariamente em todas as manifestações concretas, mas sim as determinantes estruturais, isto é, os componentes a partir dos quais é possível compreender o conjunto das manifestações, aqueles componentes que definem, explicitam, tornam inteligíveis os demais, e se não definem por eles. Em suma, tentamos demarcar a posição metodológica a partir da qual se deve proceder a análise da história da colonização”.

E mais a frente, ponderava, numa passagem de grande atualidade (nos tempos que correm, de imersão, tão ingênua, tão cega, na empiria): “Também não ignoramos que unicamente a investigação cientificamente conduzida das manifestações históricas concretas do fenômeno podem comprovar ou rejeitar uma perspectiva metodológica em confronto com outros modos de ver. Nenhum dogmatismo, pois, nos anima o espírito. Mas estamos igualmente conscientes da necessidade incontornável dos esforços deste gênero para orientar as pesquisas históricas; do contrário, correse o risco de submissão sem crítica aos dados colhidos na documentação, produzindo-se quando muito uma descrição empírica da realidade”.

O resultado do seu trabalho, definindo as estruturas e a dinâmica de um Antigo Sistema Colonial, configurou de forma permanente a historiografia brasileira. Desde então, diversas posturas críticas se delinearam, sem contudo perder de vista as soluções propostas pelo professor Fernando. De uma maneira simplificada, podemos identificar, no campo do marxismo, tentativas de conceitualizar um modo de produção colonial, dependente e escravista, sempre partindo de uma definição mais estrita que identificava a determinação primeira com as relações de produção. De forma ousada, anti-dogmática, Fernando Novais sempre pensou que a utilidade de um conceito como de modo de produção estava na aceitação integral de sua historicidade – aspecto fundamental da crítica que Marx fazia à economia política do século XIX (que ele adjetivava de “vulgar”), economia burguesa que se fundava na crença na naturalidade das leis sociais ou, em outros termos, numa metafísica da ação dos homens. Nas palavras do professor Fernando, e aqui me desculpo mais uma vez pelo recurso à citação: “O conceito de modo de produção é muito mais amplo: é um tipo especial de articulação das várias instâncias que envolvem inclusive dimensões não-econômicas e nessa concepção o modo de produção não está vinculado nem sequer a um sistema econômico. Pode existir um modo de produção que contenha várias ‘maneiras de produzir as coisas’ articuladas com o sistema global. Repito: para mim é uma coisa muito ampla, é o critério de periodização da história, que envolve política, cultura, economia, é a forma de articulação das instâncias”.

Fica evidente, então, sua posição aberta e compromissada com o resultado da reflexão. O professor Fernando nunca se cansou de nos dizer, lembrando a tirada de Soboul: “Que fique bem claro, eu sou historiador marxista e não marxista historiador”.

Na década de 90, Novais coordenou a coleção História da Vida Privada no Brasil. A obra coletiva, em quatro volumes, foi resultado de uma etapa de acumulação de novos temas e abordagens, que, além de adequar nossos passos aos da produção internacional, sobretudo a francesa, trazia também os frutos das décadas anteriores de profissionalização da pesquisa histórica e de renovação do conhecimento universitário. Inscrevia-se, como não se pode deixar de perceber, num quadro mais amplo de crise de um determinado regime discursivo – por assim dizer – ou de um paradigma das ciências do homem. Contudo, como já foi notado, no campo específico do fazer histórico esse movimento foi sentido muito mais “na abertura de novos temas”, no “retorno da narrativa” ou, pelo menos, “a uma certa forma da narrativa”, como pensava Lawrence Stone. Em verdade, a história nunca prescindiu da narrativa. Não sendo correto então identificar uma retomada. Na França, segundo Paul Ricoeur, o deslocamento resultante de seu objeto, do indivíduo agente para o fato social total, produziu, com efeito, apenas um “eclipse da narrativa”. Afinal, esta renúncia se confunde com o abandono da história “acontecimental” (événementielle), isto é, a história política, a “história-batalha”, dando lugar a uma história das conjunturas, das estruturas, mas não a um abandono efetivo da narrativa. Esta apenas se transformou. Afinal, como mostrou Ricoeur, mesmo “o longo prazo permanece prazo”. Distante dos conceitos de estrutura da economia ou da antropologia, a noção de estrutura braudeliana só é entendida se articulada à coexistência dinâmica das várias temporalidades. Há, portanto, uma narrativa da longa duração, há uma história das estruturas. Não obstante, nos tempos que correm, podemos constatar, com certa segurança, o retorno da história para a política, ou, ainda, o retorno da história para o indivíduo e para a dinâmica social.

Novais não se furtou a essa renovação, recusando, como deve ser, uma perspectiva que se insurgia contra o racionalismo ou mesmo contra a possibilidade da compreensão. Seu envolvimento no projeto da História da Vida Privada procurou manter, a partir da sua própria heterodoxia, o diálogo com novas tendências, mostrando as conexões, as permanências.

Em 2005, uma seleção de textos esparsos foi publicada com o título Aproximações: estudos de história e historiografia. Resultado de um pedido de seus alunos que, reunidos em sua homenagem no ano de 2003, discutiam com o mestre a necessidade de tornar mais acessíveis artigos e textos tão importantes. Como dizíamos na apresentação, que tive a honra de redigir, este livro é uma lição de método. A História, para Fernando Novais, não se faz com certezas, com afirmações pretensamente categóricas. Nas suas palavras, muito ao contrário, “em História, não pode haver nunca a obra definitiva; tudo a que podemos aspirar são aproximações”. Os juízes da História são sempre os leitores... nas palavras de Borges, “cisnes ainda mais tenebrosos e singulares que os bons autores”. Cabe a eles verificar qual a melhor solução, qual a que mais satisfaz seus critérios de verdade e de compreensão. Afinal, segundo o ditame de Borges, ler não seria “uma atividade posterior à de escrever: mais resignada, mais civil, mais intelectual”? Com efeito, a atividade do leitor é sempre criativa. Antes de mais nada bom leitor, notavelmente erudito, Fernando Novais sabe, como sugeriu HansGeorg Gadamer, que “o sentido de um texto supera o seu autor não ocasionalmente, mas sempre”. Por essa razão que “a compreensão nunca é um comportamento apenas reprodutivo, mas é sempre produtivo”.

Fernando Novais é um historiador, e é um professor. Neste duplo fazer, nos fez também historiadores.

Fernando sempre se destacou, para além de sua obra, pelo desempenho ímpar como professor. Lembro-me perfeitamente das suas aulas de história moderna. Meados dos anos 80... pouco antes de sua aposentadoria. A sala Caio Prado cheia... os alunos em silêncio, esperando o professor. Quando ele chegava, sempre cordial, nos apresentava sucintamente o que seria a aula. E era a aula. Cada um de nós podia sentir o prazer com que se entregava ao encadear dos argumentos, aos parênteses e pequenos detours pensados expressamente para retomar a atenção do público. Aprendíamos com o professor, sempre de espírito confiante e jovial, não apenas sobre o assunto que ele ali desenrolava... mas qual a forma, perfeita, de uma aula. Fernando numa sala de aula... é algo que nos empolgava... e ainda empolga. Porque, como se sabe, o professor se recusa a abandonar seus novos e antigos alunos.

Depois de sua aposentaria na USP, em 1986, passou à Universidade Estadual de Campinas, no Instituto de Economia. Lá esteve até o ano de 2004. Nunca se afastou, todavia, da pós-graduação e da orientação dos alunos naquela que é sua primeira casa: a Faculdade de Filosofia. Com um pé em Campinas, Fernando nunca afastou seu coração do nosso departamento. Hoje, depois de se aposentar na Unicamp, leciona (a cada semestre) na nossa pós-graduação. Para o proveito de todos nós.

Este título, que hoje lhe conferimos, não significa (tenho certeza!) apenas um reconhecimento daquilo que ele já nos deu... mas, também pelo que nos dará. Antes de mais nada, uma celebração da vida e da obra de um profissional extraordinário... nosso mestre, um colega e um amigo sempre presente.